O Lapso
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- 15 de fev. de 2024
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Atualizado: 5 de jun. de 2024
Sinopse:Do médico e escritor, pedro franco, o lapso é um livro que reúne nove contos; vai desde o cansaço de um boxeador decaído, um idoso e seu amor por um sabiá, aos casos do olhar fantasioso e intrigante de um esquizofrênico e do conto que antecede a medici.
O Lapso
E vieram todos os oficiais… e o resto do povo, desde o pequeno até ao grande.
E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita a nossa súplica na tua presença
JEREM. XLII, 1, 2.
Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que é que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o conde de Azambuja, que a princípio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. Veio, ficou e morreu com o século. Posso afirmar que era médico e holandês. Viajara muito, sabia toda a química do tempo, e mais alguma; falava correntemente cinco ou seis línguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma teoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos terapêuticos e outras muitas coisas, que o recomendam à nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso.
Ao contrário, a vida e a pessoa dele eram como a casa que um patrício lhe arranjou na Rua do Piolho, casa singelíssima, onde ele morreu pelo Natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que… Mas isto seria transtornar a ordem do conto. Vamos ao princípio.
No fim da Rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga Rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Tomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas induções, vereador da Câmara. Vereador ou não, este Tomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha também dívidas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar os seus atrasos, a velhacaria também; mas quem opinasse por uma ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguém à tarefa de escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do século passado, um homem que, por velhacaria ou desleixo, deixava de pagar aos credores.
A tradição afirma que este nosso concidadão era exato em todas as coisas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que usava pagar), não lhe regateavam provas de afeição e apreço; e, se é certo que foi vereador, como tudo faz crer, pode-se jurar que o foi a contento da cidade.
Mas então?… Lá vou; nem é outra a matéria do escrito, senão esse curioso fenômeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Tomé Gonçalves, trajado com o hábito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do pálio, e caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguém. Nas janelas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na esquina do Beco das Cancelas (a procissão descia a Rua do Hospício), depois de ajoelhados, rezados, persignados e levantados, perguntaram um ao outro, se não era tempo de recorrer à justiça.